Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A palavra em perigo

Decisões imprecisas, omissões e legislação obsoleta mostram que a liberdade de expressão no Brasil não é pra valer

01abr2020

Sou nascida na década de 1980, e seria correto dizer que a minha capacidade de linguagem se desenvolveu já em tempos de democracia. Sou de uma geração que, em princípio, sempre pôde falar e que não sabe o que é precisar retomar o direito de votar. Cresci com a confiança de habitar um mundo democrático, melhor do que aquele em que cresceram os meus pais. 

Nos meus estudos sobre o direito deparei com a natureza inacabada do projeto democrático brasileiro. Descobri que a liberdade de expressão é um direito consagrado na Constituição, celebrado por grupos das mais diversas posições no espectro político (afinal, quem ousaria ser contra?), mas bastante mal resguardado. Até hoje.

A Constituição afirma a liberdade de expressão do pensamento (art. 5º, IV) e a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX). No capítulo sobre a comunicação social, afasta a imposição legislativa de embaraço à plena liberdade de informação jornalística e veda a censura de natureza política, ideológica e artística. Com a promulgação da Carta, o jogo mudava na sociedade brasileira: passávamos da censura prévia, exercida pela burocracia estatal da ditadura, para o debate público aberto.

Muitas das determinações da Lei de Imprensa, revogada em 2009, seguem vigentes no Código Penal

Os termos dessa abertura, porém, permanecem pouco claros. A liberdade de expressão é celebrada, mas os maiores eventos de afirmação desse direito no Judiciário pós-redemocratização guardam alguma semelhança com a cena em que Dom Quixote investe contra o moinho de vento. Muito foi feito para neutralizar resquícios da censura prévia, mas pouco se definiu sobre aquilo que o cidadão pode expressar no debate público sem receio de enfrentar ação judicial.

Biografias

Em 2015, o Supremo se pronunciou sobre um problema que comprometia a circulação de biografias. Entendia-se que o Código Civil condicionava a publicação de uma biografia à autorização da pessoa biografada, ou de sua família, por considerar que essa autorização era parte do direito à privacidade. A Associação Nacional dos Editores de Livros provocou o stf a declarar que esse entendimento consagrava a censura prévia exercida por particulares. O STF acatou a provocação em defesa da liberdade de expressão, enfrentando a resistência de personalidades do meio cultural.

A decisão afastou uma ameaça à amplitude do debate de ideias, mas uma ameaça que tem poucos defensores no cenário jurídico e que passa longe de esgotar o problema. Porque um dos consensos importantes após a Constituição de 1988 é que a censura prévia viola a liberdade de expressão. Ou, nas palavras de Ayres Britto, “não é pelo temor do abuso que se vai coibir o uso”. Muito pouco se sabe, contudo, sobre o sentido do abuso. As mais de 250 páginas da decisão do stf no caso das biografias não autorizadas não ajudam muito nesse sentido. Elas garantem aos autores das biografias a liberdade de colocar as obras em circulação, mas não ajudam a prever os percalços jurídicos a que poderão estar sujeitos ao publicá-las.

As palavras de Ayres Britto constam da decisão do stf de 2009 que declara a incompatibilidade total da Lei de Imprensa de 1967 com o regime constitucional de 1988. Essa lei da ditadura militar regulamentava a liberdade de manifestação e, além de mecanismos de censura prévia, estabeleceu critérios de limitação de conteúdo inadmissíveis em uma democracia plural.

Seria possível pensar que a decisão significou um ganho claro de expansão dos limites da liberdade de expressão no Brasil. No entanto, o ganho foi mais modesto. Muitas das determinações da Lei de Imprensa continuaram vigentes em outras leis. A formulação dos chamados crimes contra a honra — calúnia, difamação e injúria — é idêntica na Lei de Imprensa e no Código Penal. Esse último segue em vigor, irradiando efeitos prejudiciais à liberdade de expressão não apenas na esfera penal, mas também na cível. Pouco se explorou, no Brasil, seja na produção acadêmica, seja no Judiciário, o sentido possível do direito à honra em uma democracia liberal plural. Se uma pessoa bravateia em rede social que todos os membros de determinado partido político são corruptos, essa pessoa viola a honra de alguém? Se um artista publica uma charge com uma imagem desconstruída de Jesus Cristo, em uma crítica às práticas de instituições religiosas, esse artista viola a lei?

Se para alguns juristas e cidadãos a resposta a essas perguntas parece evidente em determinado sentido, para outros ela parece igualmente evidente, mas em sentido oposto. O que explica o fato de o Judiciário ter se tornado um campo de batalha em torno da liberdade de expressão.

As idas e vindas ao Judiciário do canal humorístico Porta dos Fundos, campeão de audiência e de polêmica, ajudam a entender o ponto. Sátiras religiosas levaram o grupo ao Judiciário ao menos duas vezes. 

Em 2016 o Porta dos Fundos publicou o vídeo “Céu católico”: ao chegar ao céu, um fiel se frustra por lá encontrar Adolf Hitler, católico que havia pedido perdão por seus pecados, enquanto a mãe do fiel recém-chegado havia sido enviada ao inferno pelo ato imperdoável de ter comido crustáceos em vida. A associação religiosa Centro Dom Bosco processou o grupo, afirmando que o vídeo violava o direito constitucional à liberdade religiosa e incorria no crime de ultraje a culto. Na ocasião, o Judiciário entendeu que o vídeo não violava direitos.

Em 2019 o programa voltou aos tribunais em razão do vídeo “Especial de Natal: a primeira tentação de Cristo”. Jesus é retratado como um homossexual reticente quanto à condução da missão divina entre os homens. Maria é retratada como adúltera — teria mantido um caso com Deus, que por sua vez se decepciona com Jesus Cristo e propõe à mãe dele conceber uma menina. O vídeo causou imensa indignação entre instituições e fiéis cristãos.

A ação judicial de 2019 foi movida pela mesma instituição religiosa que havia tentado sem sucesso a condenação do Porta dos Fundos em 2016. Dessa vez, o Centro Dom Bosco foi mais longe. O pedido de urgência de interrupção da exibição do vídeo foi negado na primeira instância, mas deferido na segunda. A suspensão do vídeo não durou dois dias, em razão de uma terceira reviravolta no stf, por decisão do ministro Dias Toffoli.

Se eu parasse por aí, a lição enganosa seria que, peripécias judiciais à parte, o direito brasileiro se mostrou confiável na proteção da liberdade de expressão. Não é o caso. Afinal, mesmo já tendo perdido um caso semelhante, a associação religiosa entendeu que fazia sentido entrar com uma nova ação contra os humoristas. E não errou de todo: teve êxito em decisão de urgência de segunda instância. 

Terá o STF enterrado a questão de vez ao se pronunciar pela manutenção do vídeo? Longe disso: todas as decisões, inclusive o pronunciamento do stf, foram dadas em apreciação preliminar. Ou seja, são decisões acerca de um pedido de urgência, portanto não são definitivas. 

E mais: os fundamentos usados por Dias Toffoli nada esclarecem sobre o sentido do direito à honra em face da liberdade de expressão. Restringem-se a enaltecer a liberdade de expressão, sem responder à pergunta: por que o caso é de proteção da liberdade de expressão e não de violação do direito à honra? Sobre o vídeo, Toffoli se limita a dizer que “não é de se supor […] que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja existência retrocede há mais de 2 mil anos”. Como se a medida da liberdade de expressão fosse o risco de uma sátira abalar ou não crenças milenares. O sentido da liberdade de expressão não seria permitir a circulação de ideias que possam influir nas crenças das pessoas?

Se o STF não responde, a pergunta insiste, pois as pessoas leem coisas muito distintas no direito à honra, no direito à imagem, no direito à privacidade e em outros direitos salpicados na Constituição e em diversas leis. Essas pessoas seguirão colocando debaixo do braço o seu entendimento das regras para bater à porta do Judiciário reivindicando proteção.

Carnaval

Não à toa, o deputado estadual paulista Douglas Garcia (PSL), indignado com a representação contradogmática de Jesus — de “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”— no enredo da Mangueira no Carnaval de 2020, clamou no Twitter: “O Desfile da Mangueira, o Especial [de Natal] Porta dos Fundos, as milhares de ‘performances’ que ocorrem nas [universidades] Federais do Brasil adentro só expõem a necessidade dos conservadores ocuparem as artes, dança e música. Enquanto isto não ocorrer, a única arma disposta é a judicialização de tudo”. O pressuposto é claro: o direito pode calar a Mangueira. E o Porta dos Fundos. Ainda que até o momento não tenha feito isso.

A esperança do deputado não deixa de ter fundamento: afinal, Gilmar Mendes ganhou de Mônica Iozzi uma indenização de 30 mil reais por um tuíte em que criticava o habeas corpus de Mendes em favor de Roger Abdelmassih, médico que foi condenado por estupro de dezenas de mulheres. Mendes. Ganhou em primeira instância. Ela pagou. E não se falou mais no absurdo assunto. Se Gilmar Mendes pode, por que não Douglas Garcia? Por que não o Centro Dom Bosco? 

Há muitas razões para que não possam, para que Gilmar não possa. São as razões que explicam a importância da liberdade de expressão em uma democracia plural. Mas o STF não chega nem perto de errar nessa formulação, pois ele pouco se arrisca.

Enquanto o Judiciário e os juristas não derem um passo para proteger não só o direito de dizer, mas de dizer em segurança, o país seguirá celebrando uma liberdade de expressão fugidia, arriscada e desprovida de critérios.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Clarissa Gross

É coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia da FGV-SP.