Imagens da pandemia,

Sonhos confinados

Inspirados em livro de Charlotte Beradt, pesquisadores analisam estratégias subjetivas de lidar com a pandemia

01maio2020

“Aqui, na noite de 24 de julho de 1895, o mistério dos sonhos foi revelado ao Dr. Sigmund Freud.” Esta é a frase escrita na placa memorial instalada em Grinzing, na Áustria, que remete ao sonho inaugural da psicanálise: o “sonho da injeção de Irma”. Com a publicação de A interpretação dos sonhos, em 1900, os processos oníricos receberam um novo estatuto. Por trás de imagens absurdas, associações incongruentes e situações, personagens e lugares aparentemente sem sentido, Freud descobriu a lógica do desejo inconsciente. 

{{gallery#37}}

Foi desse modo que formulou a hipótese de que o “sonho é uma realização de desejos”, para imediatamente reformulá-la. Ao examinar pesadelos e sonhos de angústia, material que parecia desmentir tal hipótese, concluiu que “o sonho é realização disfarçada de desejos reprimidos, recalcados”. Com isso, o sonho apareceu como uma via de acesso ao inconsciente. Mas o estatuto do inconsciente é o de uma instância intrapsíquica, isolada do contexto sócio-histórico que a produz? Embora seja assim que certa doxa perceba a psicanálise, essa apreensão distancia-se da experiência freudiana.

A concepção de sujeito para a psicanálise nunca se confundiu com a noção de um indivíduo com uma interioridade fechada em si mesma. O sujeito da psicanálise se situou na fronteira entre a psicologia individual e a social. Isso quer dizer que o inconsciente — aquele trabalhador que não julga, não pensa e não descansa — trabalha conteúdos, impressões, intuições e percepções que nossa consciência não processa, não admite e não reconhece. Os sonhos funcionam como uma espécie de radar capaz de apreender com mais agudeza aquilo que parece recalcado ou não dito em nossa experiência social compartilhada.

Um exemplo maior dessa perspectiva é o livro Sonhos no Terceiro Reich (Três Estrelas), da jornalista alemã judia Charlotte Beradt. A autora coletou, entre 1933 e 1939, mais de trezentos sonhos entre aqueles que vivenciavam a ascensão do nazifascismo. Esse material ressaltou que a luta política é travada não apenas na arena pública, mas também no espaço mais íntimo de cada sujeito. Tais sonhos mostraram como a opressão social e as transformações na vida privada se infiltraram no espaço mais íntimo dos sujeitos: o inconsciente.

Segundo a autora, “o líder nazista que afirmou que só durante o sonho se tem vida privada subestimou as possibilidades do Terceiro Reich”. Aqui, a função dos sonhos vai além da realização de desejos recalcados e representa, também, uma antecipação do terror, que desembocaria na Segunda Guerra Mundial.

A New Yorker publicou, no fim de março, o artigo “It’s in Dreams that Americans are Making Sense of Trump” [É nos sonhos que americanos estão compreendendo Trump]. No texto de Stephen Marche, a assistente social e psicoterapeuta Martha Crawford percebeu em seu trabalho clínico um crescimento vertiginoso de relatos de sonhos envolvendo a figura do presidente Donald Trump. Ela então coletou e publicou cerca de 3 mil sonhos, mostrando que a política americana não pode ser compreendida segundo a lógica institucional ou legal, pois segue a lógica dos sonhos: “Não acredito que esses sonhos sejam sobre Donald Trump. Acredito que esses sonhos sejam sobre nós. Eles são sobre algum aspecto de nossa própria psique com o qual não lidamos”.

Projeto

Na esteira desse entendimento surgiu a pesquisa Sonhos Confinados, realizada por um grupo de pesquisadores e psicanalistas de Belo Horizonte, que tem por objetivo coletar relatos de sonhos produzidos durante a pandemia de Covid-19 a fim de analisar as estratégias subjetivas de elaboração do contexto histórico pelo qual estamos passando. Uma primeira hipótese é a de que o espaço para relatar e ser escutado pode não apenas fornecer material onírico importante para a compreensão do mal-estar contemporâneo, mas ainda funcionar como uma ferramenta para que o sujeito possa expressar angústias, medos e frustrações do confinamento. 

Em momentos de grandes transformações, aspectos afastados por nós no cotidiano parecem se presentificar de modo mais pungente. No prefácio da edição brasileira de Sonhos no Terceiro Reich, o psicanalista Christian Dunker propõe que os sonhos “ressoam e testemunham como a falta de sentido experimentada na vida social ordinária era tratada pela falta de sentido dos sonhos”, cumprindo uma função protetora, ainda que desagradável, e de elaboração de algo que escapa às representações do sujeito.

Não por acaso, Freud escreveu alguns de seus textos fundamentais em períodos de profunda transformação social e política: na Primeira Guerra Mundial, na pandemia de gripe espanhola — que vitimou uma de suas filhas — e na ascensão do nazi-fascismo. No início de 1915, ele escreveu “Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte”, em que discorreu sobre como a desilusão causada pela guerra nos obriga a mudar de atitude em relação à morte. Não poderíamos pensar o mesmo no contexto atual? Se preferimos não falar da morte, a pandemia nos confronta diariamente com imagens, números e discursos sobre pessoas mortas.

Talvez o momento presente forneça representações para aquilo que é irrepresentável para o inconsciente: nossa própria mortalidade.
A angústia perante a possibilidade da morte, as transformações dos laços e a readequação da estrutura do discurso são elementos carregados de excessos de energia no trabalho do sonho. Como forma de esquadrinhar os efeitos dessas pulsações na vida dos sujeitos diante de um mundo em suspensão, a pesquisa busca explorar essas incidências nas esferas mais íntimas de nossa psique. Não apenas coletando sonhos, mas oferecendo um espaço de escuta para esses sujeitos que compartilharam conosco pedaços de intimidade. A pesquisa está em fase de coleta de relatos e de associações. Ao longo das próximas páginas estão alguns relatos recolhidos até o momento.

Leia abaixo alguns trechos de relatos do projeto Sonhos Confinados:

“Estava na Arábia Saudita. Queria voltar para casa, mas, devido à pandemia, não havia voos, equipes aéreas disponíveis. Em um esforço grande, consigo juntar um piloto e alguns civis com o mesmo desejo de voltar para o Brasil. Não havia um copiloto, me voluntario. Lembro a sensação de estranhamento de estar naquela posição, na frente do avião. Geralmente durmo durante qualquer voo. Acordo com uma interrogação sobre como fazer o avião decolar: como vamos fazer para tirar esse negócio gigante do chão?” (Gê, 21)

“Estava com um grupo de amigos na escola onde cursei o fundamental. Nós estávamos subindo uma ladeira e eu carregava uma mochila nas costas e uma mala de rodinhas. Pensei que seria mais fácil se empurrasse a mala de rodinhas em vez de puxá-la, então levei-a para frente. Assim que fiz isso, atingi sem querer uma cadeirante que vinha na direção contrária. Ela perdeu o controle e rolou ladeira abaixo até cair e morrer. Senti muita culpa.” (Laura, 23)

“Sonhei que diversas pessoas (pareciam ‘walking dead’) tentavam entrar pelos muros das casas, mas não conseguiam. Eu me sentia muito segura dentro de casa, inatingível.” (Pepe, 19)

“Sonhei que vivia uma espécie de jogo, em que tinha que sair de casa até a rua. Durante trinta minutos, eu teria que buscar lugares seguros e cobertos de modo a não ser atingida pelas bombas nem alcançada pelo helicóptero que estava me seguindo.” (Julia, 21)

“Estou em um grande edifício, parece ser um aeroporto ou um hotel, mas os trabalhadores foram cooptados
por uma máfia secreta que queria espalhar o coronavírus pelo mundo.” (Maya, 37)

“Na metade do caminho para BH parei para abastecer o Karmann Ghia vermelho que eu pilotava. Mas, nesse ponto, me pergunto, estarrecida, como posso ter chegado ali e como vou cumprir o resto da viagem se eu não sei dirigir!” (Regina, 63)

“Estou diante da minha casa, que mais parece um pequeno prédio. Quero entrar e aperto o interfone. Meu irmão, que não mora comigo, atende e diz que não pode abrir. São as novas normas. Penso em minha filha, que no sonho tem onze anos. Resolvo arrombar a porta. Procuro por ela e a levo comigo, pensando se estaria contaminando-a com o vírus.” (Ia, 55)

Quem escreveu esse texto

Gilson Iannini

Filósofo e psicanalista, organizou a coletânea Caro Dr. Freud (Autêntica).

Guilherme Henrique Rodrigues

Pesquisador na interface entre psicanálise e teoria antropológica decolonial.

Isa Gontijo Moreira

Psicanalista, é perita do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e pesquisadora da UFMG.

Julia Werneck

É psicanalista na LAÇO — Associação de Apoio Social e Saúde Mental.