História,

Viagens culinárias entre a África e a América

As trocas entre os dois continentes podem ser sentidas no paladar e nos alimentos consumidos à mesa

01set2019

O patrimônio alimentar e culinário das zonas temperadas do Velho Mundo se formou no quadro das migrações que desde a Antiguidade unem Europa, norte da África e Ásia. A descoberta da América e a expansão interoceânica quinhentista suscitaram, num lapso de tempo mais curto, intercâmbios alimentares e gastronômicos bem mais extensos. Somando-se à navegação bilateral entre as costas africanas e americanas no Atlântico sul, a rota marítima Lisboa-Goa-Macau, com navios que fazem escala na Bahia, conecta a Ásia à América do Sul na virada do século 16. 

Desde logo, são interligadas as culturas tropicais dos três continentes e, mais precisamente, as zonas equatoriais onde se encontram os mais ricos biomas do planeta: a bacia Amazônica com a Mata Atlântica, a bacia do Congo e o arquipélago malaio. A globalização das plantas dos biomas tropicais explica a forte alta do número de vegetais repertoriados pelos botanistas europeus, que passa de mil para cerca de 6 mil ao longo do século 17. 

Paralelamente, inicia-se o tráfico de escravizados africanos rumo à América. Na sequência da multiplicação de portos marítimos e dos circuitos continentais de transporte de africanos, a rota atlântica tem impacto no conjunto das sociedades subsaarianas.

A articulação do escravismo americano aos mercados mundiais cria um desacoplamento brutal e massivo entre a grande produção e os consumidores de alimentos. De um lado, os produtores ameríndios e africanos submetidos ao trabalho compulsório nas plantações do Novo Mundo. De outro, os consumidores europeus de açúcar, tabaco, baunilha, chocolate e café. Ao mesmo tempo, no interior e nos arredores das plantações e das zonas de mineração, desenvolvem-se a pecuária e a pequena agricultura alimentícia, nas quais escravizados, criadores e agregados, sob coerção ou por estímulo econômico, garantem a produção de víveres para colonos e colonizados. Com isso, índios, africanos, mestiços e lavradores pobres abrem uma “brecha camponesa” na economia escravista. 

Habituados à criação milenar de bovinos e caprinos, às culturas intensivas, à irrigação e à fertilização das terras, comunidades subsaarianas levam para as Antilhas e as Terras Baixas da América do Sul práticas nutricionais que complementam o saber botânico, agrícola e culinário dos indígenas. Nesse processo, os europeus são ao mesmo tempo agentes e aprendizes, na medida em que dispõem de pouco ou nenhum conhecimento sobre o clima, o meio ambiente e os cultivos tropicais e subtropicais. 

Propícios à estocagem nos navios e nos portos de comércio atlânticos, o milho e a mandioca são transplantados para a ilha de São Tomé, para Elmina (no atual Gana) e para Mpinda (atualmente Soyo, no extremo norte angolano, na embocadura do Congo). A partir dali, sua cultura se espalha pelo golfo da Guiné e pela África Central. Adaptada a solos secos e pobres em nutrientes, sem predadores naturais na África, a mandioca é cultivada em toda a região subsaariana e constitui a mais importante fonte de caloria primária das populações contemporâneas do continente.  Mais dependente de irrigação, o cultivo do milho se difundiu, entretanto, em quase todas as regiões, em razão de sua alta produtividade. Atualmente, o milho é, de longe, o cereal mais consumido pelos africanos, estando bem à frente do trigo.

Culturas pantropicais

São Tomé se torna desde o final do século 16 uma plataforma de transferência de plantas alimentícias de diversos continentes. É a partir da sua aclimatação na ilha e do seu transplante para outras regiões que o coqueiro (Oceania), a banana (Ásia/África) e o cacau (América), entre outras plantas, se tornam culturas verdadeiramente pantropicais. O caráter transcontinental das redes de difusão alimentar explica a homonímia e a semelhança entre nomes de pratos de mandioca e de milho nos dois lados do oceano.

No Congo e em Angola, a tortilha de massa de farinha de mandioca mantém o nome tupi “beiju”, enquanto a farinha de milho ganhou no Brasil o nome quimbundo “fubá”, que significa “farinha”. No Nordeste, a palavra guarda sua pronúncia paroxítona, “fuba”, como em São Tomé e Angola.  Já o mingau de polvilho (ou fécula de mandioca), chamado no Brasil de “quiçamã”, tira seu nome da província angolana de Kisama. O termo quimbundo mungunzá, com milho branco doce, e a palavra do quimbundo e do quicongo “canjica” — milho duro quebrado salgado — designam em São Tomé e no Brasil o cozido de milho. Nos países latino-americanos de fraca presença africana, esse prato conserva seu nome espanhol mazamorra. Assim, o milho substitui nessas regiões a lentilha e o grão-de-bico que compõem a mazamorra mediterrânica. Tanto no Mediterrâneo, como na América hispânica a mazamorra era comida de cativos: no primeiro caso, dos forçados das galés, no segundo, dos índios das encomiendas

Na África subsaariana, o milho muitas vezes substitui o sorgo e o milhete (ou painço), dando origem a pratos semelhantes à canjica, com o nome de pap (África do Sul), aka (Nigéria), mu (Benin) e ogi (Gana). 

Outro prato de milho, que consiste numa pasta cozida enrolada numa folha de bananeira, guarda o mesmo nome africano (na língua éwé), akassa, no Benin, no Togo e no Brasil (o “acaçá” do ritual do candomblé e da cozinha baiana). Por fim, dois tubérculos de espécies e origens bem diferentes, a batata-doce sul-americana — introduzida em Angola no século 16 — e o inhame africano, volta e meia são denominados “inhame” nas cozinhas e nas roças tropicais da América e da África. 

No sentido África-América, ocorre o transplante de cereais como o gergelim, de origem subsaariana, mas com nome árabe (gilgilan), e o sorgo, chamado guinea corn nos países anglófonos. No Brasil, o capim forrageiro similar ao sorgo (Sorghum halepense) conserva o nome quicongo maçarambá, que designa, no Congo e em Angola, tanto o capim como o sorgo propriamente dito. 

Note-se ainda a transferência de frutas africanas, como a melancia ou a banana (domesticada de início na Ásia). A globalização das frutas tropicais estava em curso desde o século 16. No Recife holandês, Albert Eckhout pintou no início dos anos 1640 as cores do encontro pós-cabralino de frutas “brasileiras” oriundas de três continentes, como se vê na imagem na página ao lado. O abacaxi (do Cone Sul), o maracujá (Cone Sul), a melancia (África Ocidental), o coco (Seychelles, oceano Índico), o caju (América tropical) e a laranja (China).

Da África vieram legumes como o quiabo (okra) e o feijão-fradinho, chamado no Brasil “mucunha”, da palavra nkúnde (do lingala), e denominado niébé (do wolof) na África francófona, gub-gub na Jamaica, nguba (do quicongo e quimbundo) em Trinidad e black-eyed pea em países anglófonos.  

Para além da esfera alimentar, a culinária transposta ou adaptada às regiões americanas representa uma afirmação identitária que serve como oferenda aos deuses do panteão afro-americano e africano.

Sem ser exaustivo, esse levantamento reforça a ubiquidade da mestiçagem alimentar e das culinárias africana e afro-americana. Além do mais, o saber etnoecológico e as preferências alimentares dos africanos foram determinantes para a elaboração de culturas e pratos das comunidades coloniais e nacionais americanas. Presentes nas regiões de povoamento afro-americano desde o século 17, os molhos e pratos africanos à base de óleo de dendê, volta e meia temperados com pimenta africana, facilitaram a incorporação da fauna e das plantas dos dois continentes, tais como a banana-da-terra e a abóbora, nas cozinhas do Novo Mundo. 

Por sua vez, a cultura do arroz ilustra a adoção no Maranhão e no sul dos Estados Unidos, em particular na Carolina do Sul e na Geórgia, da tecnologia arrozeira de irrigação por inundação introduzida pelos escravizados da Alta Guiné, onde esse tipo de cultivo existia havia séculos. Nesse contexto, pesquisadores puseram em evidência o papel das mulheres da Alta Guiné na difusão na América da preparação do oeste africano de arroz e pratos derivados. Para além do trabalho na roça e na cozinha, o trabalho feminino nas comunidades domésticas do oeste da África incorpora a gestão e o comércio das mercadorias alimentícias. Atividades retomadas pelas quitandeiras (do quimbundo “kitanda”, que significa “venda, feira”) e vendedoras de rua afro-americanas, que expandem a influência dos hábitos alimentares africanos nos portos e nas cidades das Antilhas e do Brasil.

Patrimônio da humanidade

Na primeira metade do século 19, manuais culinários publicados em duas regiões de forte tradição escravagista, o estado norte-americano da Virginia e o Rio de Janeiro, incorporam receitas afro-americanas, sem, no entanto, mencionar sua origem africana. O manual da Virginia  — de Mary Randolph, The Virginia Housewife: or Methodical Cook, publicado originalmente em 1824 — apresenta pratos com quiabo como se fossem originados na cozinha antilhana, enquanto o manual assinado pelas iniciais R. C. M. publicado no Rio — Cozinheiro imperial ou nova arte do cozimento e do copeiro em todos os seus ramos, de 1840  — elenca os quitutes (do quimbundo “kitutu”) afro-brasileiros na lista das receitas brasileiras. 

A despeito das elipses dos livros de receitas, a transmissão da arte culinária africana é assegurada pela onipresença das cozinheiras, babás e amas de leite afro-americanas. Atestado na literatura, no cinema e nas caricaturas, o papel das cozinheiras afro-americanas foi crucial na cultura culinária — e na cultura em geral — das Américas. 

Nas regiões do escravismo norte-americano e brasileiro, as cozinheiras negras aparecem de maneira condescendente na publicidade de receitas e de produtos alimentícios, reforçando o estereótipo racista do “escravo feliz”. No Missouri, nasceu a marca de panquecas Aunt Jemina, retratada por uma mulher negra de traços fortes e difundida em toda parte pela companhia Quaker. 

Não por acaso o escritor Monteiro Lobato enfiou na cozinha do Sítio do Pica-Pau Amarelo a dupla Tia Nastácia (negra, supersticiosa), representando a cultura e a culinária popular, e Dona Benta (branca, racional), que encarna a sabedoria das histórias e da gastronomia europeia. No entanto  — ou melhor, por causa disso  —, as marcas de produtos alimentícios e livros de culinária inspirados na obra de Monteiro Lobato preferem adotar o nome “Dona Benta” esquecendo “Tia Anastácia”, como observou a especialista culinária Fabiolla Duarte. 

Nutrindo os bebês no seio e na mesa, cuidando da roça rural e da horta urbana, cozinhando para as senzalas, as casas-grandes rurais, os sobrados e os apartamentos das cidades, as mulheres negras consolidaram a culinária afro-americana que se afigura hoje como um patrimônio da humanidade. 

Quem escreveu esse texto

Luiz Felipe de Alencastro

Professor emérito da Sorbonne, escreveu O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul (Companhia das Letras).