Direito, Literatura,

Escarcéu jurídico

Processado por Eduardo Cunha por romance satírico sobre o impeachment, escritor narra detalhes do embate judicial

20nov2018

Alguns trechos deste texto talvez acabem indignados. Prometo tomar cuidado. Em outros, vou cometer um deslize maior: discutirei minha própria criação artística. Não me sinto confortável com isso, mas desde que enfrentei um inquérito por causa de um conto e passei horas na Polícia Federal explicando que ficção não é falsificação, comecei a me acostumar. Vou narrar uma tragicomédia. Admito que explicar minha própria obra me violenta, mas quero deixar absolutamente claro que em momento algum me sinto o pateta dessa história. 

Não me espanto quando alguém insinua que estou inventando tudo ou aumentando bastante a graça da piada. Outro fenômeno dos nossos dias, que o ministro Marco Aurélio Mello concorda serem bastante estranhos, é a superação do conceito de verossimilhança. Quem quiser conferir, convido-os à aventura: basta ir ao site do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e buscar pelo processo n° 0063612-11.2017.8.19.0001. Alguns documentos estão abertos a qualquer pessoa. Para outros, será necessária a senha de um advogado. Dali dá para ir navegando até as decisões dos desembargadores, felizmente muito lúcidas, e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Salvo engano, para chegar ao processo contra o romance assinado por “Eduardo Cunha (pseudônimo)” no Supremo Tribunal Federal (STF) é preciso ir ao site da alta corte. O número é RCL 26884/RJ. Vale o esforço.  

Durante a crise política de 2016, resolvi fazer alguma coisa. Embora artistas estivessem se movimentando, as reações me pareciam tímidas e sobretudo sem nenhum tipo de ameaça real aos atores que estavam destruindo as instituições brasileiras. Uma obra de arte só é política se de fato intervier no mundo político, transformando-o, ameaçando-o ou no mínimo abalando um poder estabelecido.

Conheço bem as afirmações de que hoje a literatura teria perdido seu alcance de intervenção social. Não concordo. Ideias como essa servem na verdade para justificar o mar de frivolidade que tomou conta do establishment literário há algumas décadas. Não sei quando a onda vai passar. É um discurso conservador, que até admite trabalhos um pouco mais empenhados, desde que não incomodem de fato. A regra é o bom comportamento.

Quando planejei o Diário da cadeia – com trechos da obra inédita Impeachment, romance de autoria do “Eduardo Cunha (pseudônimo)”, estava interessado em discutir a questão da assinatura, tão bem esmiuçada por um dos meus escritores preferidos, Jacques Derrida, e ainda pouco aproveitada na literatura. Nas artes plásticas, trabalhos notáveis como os de Richard Prince, que se apropria de nomes e obras para recontextualizá-los, ou das Guerrilla Girls, que se batizam como, por exemplo, Frida Kahlo, e discutem aspectos curatoriais, são antigos. Sherrie Levine amplia essa discussão. Para me defender, minha advogada utilizou as artes plásticas com tanta ou maior intensidade que a literatura.

Eu queria também produzir uma sátira política que, através da arte, realmente ridicularizasse os principais condutores da crise. Eles merecem. A minha busca era pela caricatura, para obter o maior efeito possível de denúncia.

Os advogados de Eduardo Cunha obtiveram uma decisão que, pela primeira vez em décadas, proibiu a circulação de um romance no Brasil

Diário da cadeia – com trechos da obra inédita Impeachment ficcionaliza os primeiros dois meses e meio do ex-deputado federal Eduardo Cunha na prisão, em Curitiba. Intercalados com as entradas do que seria o seu diário, há trechos de um hipotético livro chamado Impeachment. Como há séculos na literatura, políticos se tornam personagens da trama e o cotidiano do poder é revirado, com todo tipo de peripécia, esquisitice e malandragem.

Tomei muito cuidado com o sigilo do pseudônimo. Como levo questões estéticas bastante a sério, acredito que o pseudônimo, para ser bem-sucedido, precisa ter a maior distância possível de seu criador. Procurei uma editora com que nunca havia trabalhado, não revelei o que estava fazendo para a minha agente literária e zelei para que nem mesmo a produção do livro (revisores, capistas etc.) levasse à identificação da minha identidade. 

A rigor, no momento em que o livro foi proibido de circular, dois dias antes de chegar às livrarias, apenas três pessoas sabiam quem havia criado o “Eduardo Cunha (pseudônimo)”. Minha mãe não é uma delas.

Como afirma Sol LeWitt, “ideias em si podem ser trabalhos de arte; estão em uma cadeia de desenvolvimento que eventualmente pode achar uma forma”. Concebi o “Eduardo Cunha (pseudônimo)” e seu romance como um conjunto de conceitos: da capa ao texto, da assinatura ao fato de o livro existir, o encadeamento foi se construindo até chegar ao objeto formal. Com isso, sua força política ficaria multiplicada, já que no interior das discussões sobre a obra estariam inseridos todos esses conceitos (um preso ao outro), inclusive, e talvez sobretudo, a assinatura. Ora, a controvérsia do nome do responsável não é a razão principal de todas as calamidades políticas que afundaram o Brasil? 

Se estou bem lembrado, um jornalista informou, cinco dias antes do início da distribuição, que estava para sair o livro do “Eduardo Cunha (pseudônimo)”. A nota era curta e correta. Em reação, o ex-deputado federal Eduardo Cunha constituiu um grupo numeroso e intrépido de advogados para impedir que minha criação circulasse.

O espetáculo começa.

Para solicitar, por meio de uma decisão liminar, que o Diário da cadeia – com trechos da obra inédita Impeachment fosse proibido de chegar ao leitor, que a minha identidade fosse revelada, que o sr. Eduardo Cosentino da Cunha recebesse uma indenização por danos morais e mais uma série de outros singelos pedidos, a ação inicial argumenta que, por ter sido escrito em primeira pessoa, o texto se aproxima da autobiografia! Do mesmo jeito, os advogados de Cunha afirmam que, como o livro tem a palavra “diário” na capa, é autobiográfico!

Como o leitor da Quatro Cinco Um  deve estar duvidando de que pessoas que fizeram curso superior e foram aprovadas no exame da Ordem dos Advogados do Brasil de fato defenderam essas ideias, com galhardia e grandiloquência, cito este trecho da ação inicial: “O título do livro[,] que indica tratar-se de obra autobiográfica (i.e. ‘Diário’); e o fato de o estilo textual adotado ser autobiográfico, inclusive com escrita na 1ª pessoa do singular”. O grifo é dos advogados. Ao que tudo indica, acreditam ter dito algo de sabedoria revolucionária…

Li a ação antes do julgamento da liminar. Dei risada e, do alto da minha notável e tardiamente descoberta ingenuidade, fiquei tranquilo: juiz nenhum aceitaria proibir um romance por conta de argumentos que envergonham um estudante do ensino médio. Ordenar a dissolução do pseudônimo estava fora de questão. Para mim, a decisão seria cristalina. O juízo perceberia a estranheza dos argumentos e solicitaria um exemplar de Diário da cadeia – com trechos da obra inédita Impeachment. Isso poderia ser feito em questão de horas, o que portanto não atrapalharia a rapidez necessária para um julgamento liminar. 

Nada disso. 

Afirmando que um texto em primeira pessoa deve ser autobiográfico, os advogados de Eduardo Cunha obtiveram uma decisão que, pela primeira vez em décadas, proibiu a circulação de um romanceno Brasil. Além disso, a decisão ordenou a revelação da minha identidade e lançou uma multa elevadíssima caso, por exemplo, o livro fosse visto em uma livraria. As caixas já estavam sendo abertas…

Tudo isso aconteceu em abril de 2017.

Evidentemente, um recurso foi providenciado. A editora constituiu um advogado, eu constituí uma advogada e um escritório correspondente no Rio. Não tivemos dificuldade em rebater, um por um, os argumentos lançados contra o meu trabalho. Como escreveu a minha advogada, com redonda precisão, tudo isso “beira o burlesco”.

O desembargador que julgou de início nosso recurso, faço questão de dizer, teve acesso ao livro antes de decidir. No entanto, o prazo dado pela primeira instância para a revelação do meu nome se esgotou antes que ele decidisse. A multa chegava à casa das centenas de milhares de reais. Em cumprimento à decisão, meus dados foram protocolados no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Como conceito é obra, meu trabalho artístico estava irreparavelmente mutilado. Não consigo me lembrar de ter sofrido outra violência tão grande. A dor da invasão ao meu trabalho e da destruição da minha plena liberdade de criação eu não serei capaz de descrever. Ela fica ainda mais forte quando sei que, no mesmo período, outras pessoas tiveram o seu trabalho artístico também agredido.   

Se não me engano, no dia seguinte ao protocolo dos meus dados no tribunal o jornal Folha de S.Paulo publicou a notícia. Não fiquei incomodado. Àquela altura, cartorários, advogados, juízes e quem mais quisesse já sabiam que o pseudônimo estava destruído por ordem judicial. Achei bom que a notícia realmente chegasse ao Brasil inteiro, e o fato de isso ter sido feito de forma responsável me aliviou.

A decisão do primeiro desembargador é objetiva e cristalina. O uso de um pseudônimo não pode ser confundido com o anonimato. Ele está advertido na capa, o que deixa evidente que o criador do Diário da cadeia – com trechos da obra inédita Impeachment não é ninguém de nome Eduardo Cunha. O livro é uma sátira, cujo pano de fundo é a vida política brasileira contemporânea. Por estarem sujeitos à crítica, inerente ao seu trabalho, políticos têm a proteção ao nome e à intimidade diminuída. Nenhum político pode tentar influenciar a forma como será criticado, o que constituiria censura. Como enfatizaria depois a decisão do stf, prepondera a liberdade de criação artística. E é assim que tem que ser, sem ambiguidades. O que estou tentando mostrar em alguns de meus trabalhos é que o nome que os assina faz parte da própria criação. A tentativa de instâncias do Poder Judiciário de impedir o meu experimento artístico é um atentado aos direitos fundamentais da pessoa humana. Não pretendo acatar essa violência sem reagir.

Advogados que aceitam causas contra obras de arte envergonham a profissão. Que pensem melhor antes de fazer uma ação contra um conjunto de quadros ou uma peça de teatro, só para ganhar um trocado para a gravata de trezentos reais ou o vinho semicaro. O nó aperta, a garrafa seca e o nome deles continua lá no fundo. 

Desde que o primeiro recurso derrubou na integralidade a decisão liminar que proibia a circulação do romance, os advogados de Cunha começaram o que me sinto à vontade para chamar de escarcéu jurídico, sempre lançando mão de seus solidíssimos argumentos. Houve um mandado de segurança negado. No STJ, nada prosperou, e no STF a decisão foi também bastante clara:  “Como já destacado, nenhum direito fundamental é absoluto, sendo certo que a relatividade e os limites consistem exatamente nos demais direitos, igualmente consagrados na Constituição Federal. Na verdade, os princípios constitucionais servem, simultânea e reciprocamente, de condicionantes uns aos outros. Assim sendo, especialmente por se tratar de obra de ficção, considerando os valores envolvidos, entendo que o direito à liberdade de expressão e de manifestação, a priori, deve preponderar.”

Agora, está para ser julgada a admissibilidade de um recurso especial e de um extraordinário. Tudo isso, claro, apenas no âmbito da liminar.

Aguardamos a sentença final da primeira instância, que vai apreciar também o meu pedido de reconvenção. Enquanto isso, os advogados de Cunha pretendem entrar para a história e não param de produzir trechos juridicamente antológicos. 

Perícia

Em seu último lance, resolveram solicitar uma perícia no romance. Cito aqui o pedido, já que eu não conseguiria reescrevê-lo de forma tão heroica. Eles requerem prova “pericial, a ser realizada por especialista em direitos autorais, para que se comprove que não se trata de uma obra de ficção, considerando suas coincidências com a realidade. 1. Neste sentido, busca-se ratificar que o livro objeto desta demanda nada mais é do que uma gravíssima tentativa de ganho comercial a partir da atual posição de reclusão do autor e de toda expectativa do livro que este já noticiou estar a produzir, além de usurpar um direito inerente à personalidade do autor: o direito de usar seu próprio nome. 2. Tudo, para ao final, evidenciar a natureza do livro Diário da Cadeia – com trechos da obra inédita impeachment, que certamente não corresponde a uma ficção inteiramente dissociada da realidade, bem como a impossibilidade de atribuir ao pseudônimo escolhido a legalidade da produção da obra em questão”. 

Nem vou comentar.

O juízo concedeu a perícia.

Pelo que entendi, querem determinar a porcentagem de ficção que haveria no livro para arbitrar se podemos ou não chamá-lo de literatura. Com isso, imagino que pretendem reivindicar participação nos direitos autorais, já que solicitaram perícia de especialista na área. Talvez seja outra coisa que a gente não alcance.

Nós, que lidamos com a arte, não temos nenhuma relação, de dependência ou de vínculo, com a realidade. Já o direito, obviamente, está preso incontornavelmente a ela. O que decide um juiz terá ampla repercussão na vida diária de pessoas, comunidades e, como brasileiros sabemos bem, toda uma nação.

As contingências e o meu projeto artístico me aproximaram do direito. Assim, eu gostaria de terminar com uma pergunta, muito singela, como tudo o que narrei, mas importante para mim: operadores do direito fazem como para separar uma discussão teórica inteligente, rica e cheia de bibliografia notável, com uma prática que muitas vezes se aproxima da mera bizarrice?

Quem escreveu esse texto

Ricardo Lísias

Escreveu Diário da cadeia (Record) sob o pseudônimo de Eduardo Cunha.