Direito,

A ilusão do jurista apolítico

O direito brasileiro dá escala a empreitadas autoritárias quando finge não enxergar que a Constituição é repleta de juízos de valor

01mar2020

Quando concluí a graduação em direito, há quase vinte anos, eu e muitos colegas nos debatíamos sobre nossos rumos acadêmicos e profissionais. Conversava com uma amiga que havia decidido abandonar o direito e cursar mestrado em ciência política. Perguntei a ela o porquê. “Eu quero estudar um tema que não é tratado por juristas”, respondeu. Perguntei qual era o tema. “Democracia.”

Minha amiga tinha razão. No direito, não refletimos sobre a democracia. Para nós, tudo decorre da Constituição de 1988, e a Constituição é um documento democrático, então voilà: advogados, juízes, promotores e delegados não teriam de se preocupar com dilemas democráticos em seu exercício profissional cotidiano.

A incapacidade de reflexão nos faz falta quando o pressuposto democrático que tomamos como dado começa a rarear. Afinal, democracia é um regime que se mantém vivo pelo constante aprimoramento de diversas instituições, muitas delas ocupadas exclusivamente por bacharéis em direito (como o Poder Judiciário, os ministérios públicos e a advocacia pública e privada).

Sobre essa incapacidade de base, a ideologia jurídica aplica um verniz anestesiante: o ideal do “apoliticismo”. Ventilado como elogio, ele sugere que o bom profissional do direito não deixa seus juízos de valor transbordar para sua atuação profissional. Sem fazer a necessária distinção entre militância sectária e defesa consistente da Constituição e suas instituições, a versão mais obtusa desse ideal sustenta que juristas serão mais técnicos quanto mais indiferentes forem aos méritos ou deméritos democráticos das leis e dos atos de seu governo.

O apoliticismo obtuso finge não enxergar que a própria Constituição é recheada de juízos de valor, todos eles produtos das escolhas de moralidade política da geração constituinte: a prevalência dos direitos humanos, o combate a desigualdades regionais, a liberdade de opinião e a de informação, a defesa do meio ambiente, a livre-iniciativa. Buscar, em cada ato profissional, a realização desses valores em sua maior medida não é proselitismo político ou militância vulgar, mas dever de ofício.

No Brasil, uma conjuntura particular dá impulso ao apoliticismo: no Poder Judiciário, que é jurídico em sua essência, próceres da magistratura trabalham pelo desprezo público da própria imagem e ignoram mandamentos elementares da prudência judicial. Há suspeitas de imparcialidade, lobby em favor de parentes, comentários públicos incompatíveis com a etiqueta judicial, atuação antirrepublicana por interesses corporativos e, claro, uma jurisprudência vacilante que sacode ao sabor dos ventos da política partidária.

Precisamos distinguir a magistratura politiqueira, um mal que deve ser denunciado e combatido, daquela que serena e fundamentadamente defende a integridade da Constituição a cada decisão. Juízes, promotores e advogados públicos não podem tornar-se insensíveis aos fundamentos morais da autoridade do direito. Quando essa parte do coração de um jurista morre, ele se torna o burocrata dos sonhos de governantes autoritários: um capanga altamente técnico que entrega grandes resultados, sem fazer sequer perguntas incômodas.

Em dezembro de 1968, Hely Lopes Meirelles, cultuado pensador do direito administrativo no Brasil, publicou um breve artigo na prestigiosa Revista dos Tribunais, explicando, didaticamente, o significado do AI-5. Sem juízos de valor e sem adjetivação, seu texto não condenava nem celebrava o ato: apenas esclarecia conceitos e elucidava termos técnicos.

Um texto “técnico” e “apolítico” sobre uma medida legislativa “dura”, porém “formalmente válida”: assim teria sido elogiado à época pelos seus pares. Porém, nas relações de poder da vida real, o texto de Meirelles orientou juízes, promotores, delegados e censores nas tarefas mais infames da repressão: vestiu bordões antidemocráticos e dispositivos flagrantemente tirânicos nos trajes de gala dos argumentos jurídicos que supostamente mereceriam séria consideração.

Autoengano

Juristas são tecnocratas do poder. Nesse sentido, nosso apoliticismo é apenas fuga e autoengano. No livro Authoritarian rule of law (“Estado de direito autoritário”, Cambridge, 2012), Jothie Rajah conta que uma plateia de 4 mil advogados de 120 países caiu na gargalhada quando uma alta autoridade política de Singapura sustentou que o país vivia sob o estado de direito porque tinha atividades legislativas e judiciárias regulares. O público não mordeu a isca, mas a pretensão do palestrante era óbvia: autocratas se beneficiam da aparência de normalidade democrática que acompanha a burocracia jurídica e a atuação de
seus profissionais.

O direito também dá escala a empreitadas autoritárias: a normalização jurídica substitui o arbítrio individual do guarda da esquina pela incorporação de abusos à rotina estatal. Na emergência da “Guerra ao Terror”, após o atentado de 11 de setembro de 2001, o serviço de inteligência dos eua recorreu a torturas no interrogatório de suspeitos. Sabendo da vedação constitucional, o governo acionou seus juristas: deram-lhe distinções técnicas, conceitos e argumentos que permitiram que a prática se tornasse ao menos juridicamente debatível na esfera pública.

Para o autocrata e o torturador, o parecer jurídico não precisa ser bom: basta que um argumento, ainda que bambo, seja colocado no papel e assinado por um profissional do direito. Isso bastará para que ele alegue que sua conduta não lhe parecia flagrantemente ilegal. “Tínhamos pareceres jurídicos dizendo que técnicas avançadas de interrogatório” — eufemismo para tortura — “não eram inconstitucionais”, declarou recentemente um dos psicólogos responsáveis por aquele programa. Advogados e procuradores que trabalham para governos precisam ser especialmente sensíveis a seus compromissos éticos e constitucionais quando lhes são pedidos pareceres técnicos sobre medidas que visam a retaliar a imprensa crítica, trair o compromisso ambiental firmado pela Constituição e pelas leis ou interferir politicamente nos órgãos técnicos visando a resultados não republicanos.

As empreitadas mais eficazes de tirania política duradoura e de violação continuada de direitos humanos contaram com advogados e procuradores inteligentes e criativos, juízes omissos e procuradores colaboracionistas. Todos podiam dizer-se “apolíticos”: afinal, serviram a tiranias como serviriam a democracias.

Quem escreveu esse texto

Rafael Mafei Rabelo Queiroz

Co-organizou História oral do Supremo: Francisco Rezek (FGV Direito Rio).