As Cidades e As Coisas,

Muros que cegam

O flerte com a ostentação tem causado uma nova fronteira social entre o centro e os bairros periféricos da zona leste

28maio2020


Vila Regente Feijó, conhecida como Jardim Anália Franco [Lucas Chiconi]

São Paulo costuma ser complexa demais aos olhos de quem a vê pela primeira vez. Mas mesmo aqueles que a veem há muito tempo podem ter se acostumado a olhar apenas para uma parte da cidade. Para muitos, pode parecer como um amontoado de prédios. As representações tradicionais da cidade variam dos edifícios espelhados da Berrini aos planos de sobrevoo que mostram uma imensidão de prédios perfilados. As construções altas costumam ser associadas com lugares de riqueza e de expansão imobiliária. 

Essa certamente não é a associação comumente feita com a zona leste, a mais populosa da cidade. Pelo passado industrial, ficou reconhecida por ser a principal periferia da metrópole, oposta geograficamente às elites que ocupavam a zona oeste e concentravam as principais centralidades perto das suas casas. Muitas transformações ocorreram nas últimas décadas. Mas deixamos de ver muitas delas na medida em que os olhares dos profissionais da política urbana estavam voltados para o assim chamado vetor sudoeste. O mercado imobiliário já estava aquecido na Mooca e no Tatuapé ao menos desde a década de 1990. Mas, para muitos, o choque veio no ano passado. Emergiu na paisagem um espigão de luxo de 52 andares no miolo do Tatuapé, além de outros projetos de torres de mais de quarenta andares.


Edifício Figueira, com 52 andares, em construção. Contraste com sobrados antigos do Largo do Bom Parto
[Lucas Chiconi]

Casario dos anos 1930, na Água Rasa, destruído recentemente. Ao fundo à esquerda, o Edifício Figueira em construção, com 52 andares [Lucas Chiconi]

Virada

O ponto de virada nesta transformação é a inauguração do shopping Anália Franco em 1999, na Vila Regente Feijó, conhecida como Jardim Anália Franco. É nesse momento que o mercado de médio e alto padrão se consolida na região do Tatuapé e em seu entorno. O shopping center é da Rede Multiplan, a mesma dos shoppings Morumbi, de 1982, e Vila Olímpia, de 2009, ano em que o Anália Franco passava pela expansão do terceiro andar. Atualmente, até áreas muito conhecidas pelo perfil mais popular de comércio e serviços, como a Avenida Celso Garcia, têm sido alvo de empreendimentos caros que focam na classe média ascendente. 

No início da década de 2010, a região já contava com pelo menos nove prédios com altura superior a trinta andares. Em 2014, surgiram outros dois prédios acima dos quarenta andares. Assim, o espigão de 52 andares só causou surpresa em quem não estava atento. A mesma construtora que planeja um residencial de luxo projeta outra torre, com 46 andares, que contará com unidades residenciais, lojas, hotel, escritórios e lajes corporativas ao lado do shopping Metrô Tatuapé. Integra o Eixo Platina, uma centralidade financeira idealizada e em construção entre as estações Belém e Carrão do metrô, um novo polo de atração de empreendimentos.

Para os moradores da região, esse é um processo que vem se desenhando há anos, com a valorização da terra e o aumento do valor do metro quadrado. Apartamentos acima dos 150 metros quadrados, bem como unidades que vão de duzentos a seiscentos metros quadrados se tornaram comuns. Muito além da altura e dos padrões desses edifícios, a arquitetura e a relação urbanística desses empreendimentos com a cidade deve ser questionada por suas representações e impactos socioambientais. Em termos de projeto, estes edifícios sacrificam a vitalidade das relações humanas e a paisagem das ruas, independentemente dos padrões sociais determinados. 


Vista da linha de edifícios de trinta a quarenta andares a partir de um dos miolos ainda predominantemente de casas. Em primeiro plano, o terreno para construção de um edifício com 22 andares [Lucas Chiconi]

São prédios que se descolam da cidade por meio de grandes recuos e muros. Diferentemente dos prédios antigos, muito próximos da calçada, promovendo olhos e forma às ruas, os projetos contemporâneos seguem um perfil arquitetônico que reflete e intensifica as desigualdades. A estética é genérica, replicada em vários bairros por toda a cidade, ignorando particularidades do relevo, da escala, da identidade. A segurança não é mais pensada na esfera pública, mas se tornou exclusiva dos condomínios com suas guaritas, portarias, halls de entrada e tantos espaços que separam os apartamentos da rua.

O mesmo pode ser observado nas novas casas da classe média, onde a garagem constitui esse recuo entre a rua e a casa. A paisagem de casas e vilas que promovem laços, especialmente com praças, bem como de edifícios baixos que moldam esquinas das vias principais, vai sendo alterada por edifícios que poderiam estar em qualquer lugar, já que o território parece não ser determinante na concepção desses projetos. Cidades ao redor do mundo constroem com variadas alturas, mas entendem que um edifício é parte da cidade e compõem o todo. Do chão até o céu. E, em muitas delas, é justamente a relação do térreo com a calçada que as tornam tão populares entre moradores e turistas. Quem gosta de caminhar em ruas cegas por muros?


Arranha-céus do Tatuapé (centro) e Anália Franco (direita) vistos do Edifício Copan, no Centro [Lucas Chiconi]

Fronteira social

Água Rasa, Belém, Carrão, Mooca, Tatuapé, Vila Formosa, Vila Prudente e parcialmente os distritos de Aricanduva, Penha, São Lucas e Vila Matilde têm se tornado uma grande fronteira social entre o centro e os bairros periféricos da região. Se somos capazes de compreender o abismo social e as diferenças estruturais entre Moema e Parelheiros, na zona sul, e Pinheiros e a Favela do Jaguaré, na Zona Oeste, ainda estamos longe de compreender as desigualdades e diferenças entre bairros da zona leste.

O imaginário que identifica a região como uma espécie de massa anônima e genérica ainda é presente. Olhar para as especificidades faz com que possamos ver os enclaves de classe média na periferia, como a porção central de São Miguel Paulista e o Jardim Nossa Senhora do Carmo – esse último, na região de Itaquera, ao lado do Parque do Carmo.

Uma parte importante de lutar pelo direito à cidade está em compreender o território com mais profundidade, principalmente para avançarmos sobre as críticas às desigualdades socioespaciais. Estamos deixando de ver processos importantes porque estamos olhando para o outro lado. Compreender a cidade exige uma mudança de olhar, principalmente em territórios gigantes e complexos como São Paulo.

Hoje, a impressão que moradores de outros bairros da região têm sobre o Tatuapé e entorno é semelhante à impressão de grande parte da cidade sobre os bairros do vetor sudoeste: um lugar cada vez mais fechado em muros e ostentação, rompendo com seu passado operário e de vitalidade social nas ruas. 


Conjunto Acrópole, empreendimento de casas geminadas dos anos 1950. Atualmente, os imóveis das bordas são de comércio e serviços, incluindo um point boêmio e gastronômico da região [Imagem do Google Earth manipulada por Lucas Chiconi]

Descolamento do tecido urbano: casa isolada em meio a três condomínios de prédios [Imagem do Google Earth manipulada por Lucas Chiconi]

Áreas de lazer privativas e grandes recuos de condomínios verticais que não se comunicam entre si [Imagem do Google Earth manipulada por Lucas Chiconi]

Em 2019, a região foi palco de um embate entre os arranha-céus e o patrimônio histórico por meio da destruição da Vila João Migliari, um conjunto de sessenta casas construído nos anos 1950 durante o auge da industrialização na cidade. Era um espaço marcado pelo pertencimento. Essas referências vão se perdendo com as transformações massivas do território. Dão lugar a prédios sem nenhuma relação arquitetônica, urbanística e paisagística com o tecido urbano pré-existente, seja pelos elementos de segregação – muros, grades e recuos excessivos –, pela discrepância de proporção entre a área construída e a altura ou pela estética adotada (formas, aberturas, revestimentos). O que está em jogo são a memória e os laços sociais na cidade. O flerte com os desejos de ostentação já causam implosão e uma nova fronteira social se forma entre o centro e os bairros periféricos da zona leste.

Quem escreveu esse texto

Lucas Chiconi

É coordenador do Núcleo de Valorização do Patrimônio na Secretaria Municipal de Cultura.