Internacional,

Uma revolução deve ser assim

A vida nos dias que se seguiram ao terremoto de 19 de setembro, que derrubou 50 prédios na Cidade do México

13nov2018 | Edição #7 nov.2017

Lembro do terremoto de 1985 como um conjunto de sensações isoladas em que o protagonista é o abalo, e não os seus efeitos. Eu era pequena. Com o correr do tempo, consegui interpretar algumas outras lembranças: o cheiro, por exemplo, que saía dos escombros do meu bairro. Só depois entendi que era o cheiro dos mortos.

Mas a compreensão de um terremoto não se limita a esse choque inicial diante do espetáculo tectônico, com seus estalos e relâmpagos. O terremoto é o que vem depois: não é o pânico nem a imagem dos prédios batendo uns contra os outros. Nem o susto de perder a casa, ou de saber-se vivo sem saber dos outros. O terremoto é o que fica exposto: o osso, a fratura aberta nas dinâmicas da cidade.

Em 19 de setembro último, bem no aniversário do terremoto de 85, a terra pulou sob os nossos pés. O país já vivia uma emergência depois do tremor de 8 de setembro, que atingiu os estados de Oaxaca e Chiapas, mas a capital, intacta, parecia invulnerável.

E não era. Em 19 de setembro, o alerta chegou tarde. A cinquenta metros de casa, desabou a torre de uma escola. Fomos, centenas de pessoas, retirar os escombros com as mãos, sem técnica nem ferramentas, pensando que havia feridos embaixo. Não havia. Mas a queda daquela torre já anunciava o desastre. Passamos horas sem eletricidade e telefone. As ruas mergulharam no silêncio. Do nada — ou dos antigos traumas da cidade — brotaram massas que circulavam com pás, picaretas e capacetes para oferecer ajuda.

O meu prédio não foi atingido, mas o meu bairro flutua sobre a lama do lago fantasma de Tenochtitlán, que potencializa as ondas sísmicas. Nós, moradores desses terrenos instáveis, que vimos de perto os efeitos do abalo, inclusive amigos cujas casas ficaram inabitáveis, tentamos ajudar o máximo possível durante os três ou quatro dias seguintes, em que os trabalhos foram suspensos na cidade, as escolas fecharam e nos tornamos todos parte desse drama coletivo, perdendo (felizmente!) os traços da individualidade. Na capital, quase cinquenta prédios desabaram. E até em estados com subsolos sólidos, casas, escolas e igrejas ruíram. Nos dias seguintes, centros de coleta surgiram, espontâneos como fungos. Passei uns dez dias trabalhando num deles, nascido do pânico da queda iminente de um prédio monstruoso. Fugi e me escondi atrás do muro de um lote vazio; lá estavam outras pessoas como eu, assustadas, mas tentando ser úteis, e dessa reunião súbita surgiu uma pequena organização que ainda recebe doações aos sábados. Restaurantes chiques viraram refeitórios comunitários. Socorristas aceitavam ferramentas e caronas sem medo, num país de sequestros. O governo não quis organizar essa explosão de energia nem forneceu ferramentas para o resgate. Foram os civis que pediram máquinas, pregos, botas, tábuas e remédios, e foram os civis que doaram tudo isso para salvar as pessoas soterradas. A polícia olhava de longe, mastigando nacos de sanduíche. O exército apareceu tarde, sem ferramentas, criando tensões com os voluntários.

Cabeças e corpos

No centro de coleta observávamos tudo aquilo e pensávamos: uma revolução deve ser assim. Cabeças e corpos subitamente organizados, entregues a um esforço coletivo. O que seria daquela energia toda voltada à abolição desse sistema?

Restaurantes chiques viraram refeitórios comunitários. Socorristas aceitavam ferramentas e caronas sem medo, num país de sequestros

E as feridas da cidade, irrefutáveis. Na Calle de Bolívar, um prédio com oficinas de costura e escritórios deixou expostas as condições de trabalho das operárias. Migrantes taiwanesas trabalhavam sem direitos. Um comprovante de pagamento desvendou, entre os escombros, salários miseráveis. Sem uma relação de nomes foi impossível saber quantas pessoas trabalhavam ali, e os voluntários, liderados por uma brigada feminista, tiveram que impedir a entrada das máquinas até o resgate do último corpo. A história se repetia: em 85 morreram seiscentas operárias em oficinas de costura clandestinas. Das ruínas nasceu o Sindicato das Costureiras 19 de Setembro. No espaço vazio que ficou na Calle de Bolívar, socorristas e ativistas construíram um memorial, onde uma militante surgida daquele movimento denunciou as condições em que trabalha o setor ainda hoje, exigindo a expropriação do local para dedicar o espaço à proteção das trabalhadoras.

Aos poucos, a esperança de encontrar vivos entre os escombros diminuiu, e a chuva, o cansaço e a tristeza caíram sobre a cidade. No dia 22, já era possível sentir o cheiro da morte entre os escombros da Álvaro Obregón 286, onde mais de quarenta famílias esperavam notícias sem que as autoridades informassem o número e a localização dos corpos resgatados. O trabalho dos socorristas e o acampamento das famílias foram sustentados pela sociedade civil. Comunidades da zona sul da cidade e dos estados de Puebla e Morelos demoraram para receber ajuda. Mais de 150 mil moradias se perderam por causa dos dois grandes tremores de setembro. Quase todos os centros de coleta fecharam após a primeira semana, mas as milhares de vítimas, cujo futuro não está claro, vão precisar de apoio por mais tempo. O governo de Morelos cooptou as doações para marcá-las com propaganda eleitoral.

Carência e luta 

Um terremoto são essas histórias de carência e luta, tristeza e corrupção. É o governador que roubou as doações; e é o velho pobre que passava às seis da tarde com panelas de café e macarrão no nosso centro; é a igreja reduzida a pó depois de quatrocentos anos; é a mão de uma mulher morta (unhas pintadas de azul) entre as ruínas; os jovens nas ruas, ajudando por horas a fio; as novas construtoras sonhando com lucros futuros, e as antigas, que lucraram construindo prédios deficientes; são as crianças mortas numa escola que funcionava com documentos falsos; a incerteza sobre os recursos necessários para a reconstrução do país; os arquitetos e médicos que percorreram as cidades abafando feridas e pânicos; são os que ficaram sem casa; o medo; a noção de que nada é sólido; é a exploração, que faz girar as engrenagens do capitalismo, e os partidos burgueses lambendo os beiços diante do festim vindouro. Um terremoto pode durar décadas: vítimas do abalo de 85 ainda aguardam indenizações.

Quem escreveu esse texto

Paula Abramo

É tradutora de literatura brasileira no México e poeta. Publicou Fiat Lux (Fondo Editorial Tierra Adientro).

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.